sábado, 8 de julho de 2023

GOL

...

Painho falava pouco. Eu achava que era comigo. Depois, descobri que era o jeito dele. Nos poucos momentos em que ele falava, eu gostava de ouvir sua voz grave. Mal via seus lábios mexendo por baixo do bigode grisalho. Ele tinha umas tiradas, uns gracejos sobre qualquer situação. Depois, na Faculdade, descobri que o nome disso é chiste. Também tinha aquelas frases, adágios que ele repetia direto, tipo “só acaba quando termina”. Sempre que a coisa parecia sem solução, Seu Geninho soltava o “só acaba quando termina”. Também descobri que, sob a casca daquele homem de olhar grave, de pouca intimidade com estranhos, havia um humor refinado. E que o humor pode ser uma ética, uma sabedoria.  Painho, seu Genivaldo, Geninho para meus tios, era assim: disciplinado, calado, mas bem-humorado. Todavia, se o gelo fosse quebrado e ele lhe desse ousadia... Ai... Você iria do céu ao inferno. Ele gostava de samba e do trabalho. Era motorista da linha São Cristóvão – Barroquinha. Se orgulhava de ter uma filha que fez Faculdade na Federal. Um dos poucos momentos em que vi meu pai sorrir e chorar foi na minha formatura, quando ele teve de me entregar o canudo, e, num breve momento, nossos olhos se cruzaram, e eu vi a alegria de sua alma. Mãinha era sua grande companheira. Ele dizia que éramos as donas dele. Eu achava diferente. Eu achava painho uma espécie de rei africano, solene e altivo. Filho de Xangô, não tolerava injustiça. Quando via uma injustiça, sai debaixo... Injustiça é sempre a covardia com o mais fraco, dizia. Também na Faculdade estudei isso. Sobre autoridade, a justiça e a injustiça. Seu olhar de reprovação era pior que um tapa. Era como se seu amor fosse expresso no rigor. Ele dizia “Sou pelo justo, nem mais nem menos”, e bufava: “Runf...”.

Além de mim, mãinha, a firma e o samba, sua outra família era o Esporte Clube Bahia. O Baêa era uma das poucas coisas que tirava painho do sério. Aquele ser de ar formal se transformava em dia de jogo. Talvez as poucas vezes que vi painho xingando era quando o Bahia entrava em campo. Se bem que, “disgraça”, na Bahia, nem xingamento é. Ele gritava “disgraça de juiz” o tempo todo. Não sobrava um, ele picava a porra na mesa, ficava uma fera. Nem era bom se meter com ele nessas horas. Eu tenho um tio gaiato que traiu nossa família e se bandeou pro lado do time do Vice, o Vicetória, essa carniça. Quando o Bahia perdia, meu tio Felício ligava (naquele tempo era telefone de disco e nem existia celular), e era pra pirraçar painho. Viviam se ofendendo por causa da rivalidade da gente com o pessoal do Lixão. E, no dia que meu tio chegou em casa depois que o Bahia perdeu um BA-VI? Ave Maria... Foi um rebuliço naquela casa. Esse mesmo tio, uma vez, contratou um carro de som, para, de manhã cedo, ficar tocando o hino do Vicetória na frente de nossa casa, ali na Mouraria.  Menino, nunca esqueço: meu pai nem tinha areado os dentes, desceu virado na zorra e foi discutir com o homem da Kombi, coitado, que apenas foi pago para realizar aquela cena! Hoje, eu penso que essa rivalidade, com tons teatrais, era o que havia de mais precioso e genuíno na relação deles.

Painho me levou em vários jogos do Bahia na Fonte Nova. Cresci com a memória da descida da ladeira da Fonte, as cores, o zum zum zum... Esses fatos ficaram na memória, nas minhas lembranças dos momentos que tive com ele quando jovem, como no dia da formatura. Há também uma lembrança que me pego degustando até hoje. Quando ele me levava para escola algumas vezes. E, no caminho, me perguntava das coisas da escola, e também comprava mingau com a senhora que ficava na frente do Colégio Central. Ele colocava canela no mingau. Adorava café, e vivia de prosa com os meninos do carrinho do café, empreendimento móvel que só existe em Salvador, o que deve ter adiado a vinda dessas franquias chiques de café para esses lados. Até hoje, o cheiro de canela me faz lembrar desse caminho. Incrível, né: um cheiro, uma cor, uma música nos transportam para lugares e tempos distantes... A verdadeira máquina do tempo são os sentidos. A outra lembrança marcante que tenho foi quando ele me levou na Fonte Nova antiga. Eu era pequena, mas já tinha minha camisa tricolor. Era um BAVI, final de campeonato, o Bahia precisava apenas de um empate para ser bicampeão baiano, mas estava perdendo de um a zero.

Painho estava mais nervoso do que o de costume. Xingava o tempo todo. Eu me lembro da torcida impaciente. Meu sentimento, naquele dia, era confuso: estava alegre por partilhar com painho aquele dia especial de ver o Baêa, mas nervosa com a apreensão dele. O risco do “destriunfo” era grande. Eu queria ganhar, e não suportava imaginar a pirraça dos vicentinos se aquele placar nos tirasse o título. Painho segurava com a mão seu radinho de pilha colado no ouvido; ele só ouvia a Sociedade AM. Pensei em alguns instantes: aquele ser era sempre tão seguro, mas quando estava diante de um jogo de futebol, revelava, finalmente, as fraquezas do humano. A fortaleza Geninho, enfim, mostrava suas fragilidades a meus olhos de criança. E estávamos ali, juntos, agoniados e torcendo. Acho que meu amor pelo futebol e pelo Baêa vem daí. Penso, a partir disso, que a verdadeira herança que nossos pais podem nos legar são seus afetos. Depois, eu descobri, pelos livros e me vendo pelos espelhos da vida, que eu queria, pelo meu desejo de ter o desejo de painho, ser parte do seu amor, o Bahia. Estudei isso mais tarde na Faculdade, e depois, já no exercício de meu ofício – que consiste basicamente em fazer com que as pessoas se ouçam ao falarem para mim –, todas essas questões foram ficando mais sensíveis.

Naquele dia, tudo para mim se resolveria se o Bahia fizesse um gol. Bastava um gol para nos libertar; bastava um gol para eu poder gritar com meu pai e com a massa. Pois bem. Já estávamos no finalzinho do segundo tempo, e o Bahia precisava apenas de um golzinho para ganhar o campeonato baiano. O tempo passava rápido, 42 minutos do segundo tempo. Eis que, quando tudo parecia perdido, depois de um bate e rebate, a bola sobra na entrada da área, e um jogador do Bahia aproveita, chuta e... GOL!  Não sabia o nome daquele jogador na época, só sabia que ali estava um herói. Eu meio que duvidava dessa estória de heróis. Quando era pequena, meus professores diziam que heróis eram só os dos gregos; tempos depois, descobri que há muitos outros heróis, como minhas avós, que seguraram a onda de toda uma geração. A gente só está aqui pela luta dos que vieram antes. E, assim, fui descobrindo esse heroísmo do cotidiano, da ancestralidade por vezes sem voz. E nessa minha aprendizagem, entre estudos e Fonte Nova, passei a decorar os nomes de alguns jogadores do Bahia. Havia os mais famosos, por causa do título nacional de 1988, Charles, e a eterna elegância sutil de Bobô. Mas eu também sempre fui meio assim, como se diz, “do contra”. Um astrólogo me disse que é por causa do meu signo, Aquário. Não acredito em horóscopo. Quer dizer, só quando a previsão é boa pra mim. Por causa desse meu jeitinho, eu sempre olhava para além do que todo mundo enxergava. Por isso, eu gostava de um herói de 1988 nem sempre exaltado, Paulo Rodrigues, que, para mim, era a personificação da metáfora “jogar de terno”; também tinha Baiaco, “o pulmão tricolor”. Metáforas bonitas da zorra, vamos combinar...

 Então, nesse dia eletrizante, esse gol foi o gol libertador, o do título! Os gregos (de novo) têm uma palavra pra isso, mas esses aí também não tinham mais o que fazer, não tinham uns “corre”, e ficavam inventando palavra pra tudo. “Cartarse” é a dita palavra. A torcida explodiu de forma catártica. Ou, como falamos aqui, “lavamos a alma”, uma lavagem das escadarias das igrejas de nossos desejos. Foi isso. Em meus ouvidos reverberava o barulho dos fogos. Todos pulavam. Era aquela energia, que, anos depois, pude vivenciar, na pipoca do Chiclete passando pela Avenida 7, subindo a Castro Alves. Foi aí que, depois do gol salvador, olhei para painho: seus olhos estavam marejados, voz rouca, gritando: “Bora Baêa minha Porra!!” Após o jogo, painho me colocou sobre seus ombros, “na cacunda”, como dizia, e saímos em cortejo da Fonte Nova. Era maravilhoso ver todos pelo alto, gritando alegremente. A festa foi longe...

Sinto falta da voz de painho. Às vezes me pego ouvindo ele praguejando nos corredores da casa. Em dias de jogos do Bahia, como hoje, essas coisas batem mais fortes. Fecho os olhos e tudo me aparece vivamente. E, em dias de jogos difíceis, ou quando algo aperta a minha mente, sou capaz de ver seu Geninho falando: “Só acaba quando termina...”. É uma sensação real de presença. É justamente como vi num filme certa vez, ou seja, a verdadeira morte é ser esquecido. O amor é um tipo de memória. A vida acaba, mas as pessoas que amamos não terminam: elas povoam nossas memórias. Aprendi isso na Faculdade e na vida. Ah, o nome do jogador é Raudinei. Isso ficou marcado na História como o famoso gol de Raudnei. Para uns, um gol salvador, uma lição de persistência.  Para mim, é tudo isso e muito mais. Mas chega de laranjada, está na hora de ir pra Fonte Nova: mais um jogo... Vou levar meu filho para seu primeiro BAVI. É isso, então. Como eu disse antes, a única coisa preciosa que podemos legar para aqueles que chegam depois são os nossos afetos. Hoje, penso muito sobre a importância de esses afetos permanecerem vivos na gente. E que eles possam sempre nos habitar em qualquer momento do jogo, mesmo aos 42 minutos do segundo tempo. São memórias que podem correr todo o campo, e nos tocam pelas lembranças de um cheiro, um sabor, um olhar ou apenas um gol.

B.B.M.P!

 

Vladimir Luz, Niterói (RJ), 08.07, 2023.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Dor e glória




Freud dizia que uma das causas da infelicidade humana está na degradação do corpo.  O corpo é uma das testemunhas implacáveis  do tempo. No corpo, as marcas da finitude se mostram mais visíveis. A velhice, assim, faz-se carne. Mas mesmo a concretude da velhice vem acompanhada de uma “illusio”. O velho, ao se olhar no espelho, sabe que aquele que observa está marcado pela ilusão do tempo, cujo reflexo é somente uma parte de si, ao passo em que a memória teima em ver outro, um estranho-familiar. Afinal, ante a ilusão especular do tempo, surge a pergunta:  quem é este velho que me olha?


                    *** 

Salvador, personagem autobiográfico de Antonio Banderas em “Dor e Glória”, tem no corpo os sinais do tempo. Dores crônicas, cabelos brancos. Rugas que roubaram o viço e o brilho de antes. A máquina de tendões e músculos não mais obedecia os comandos da mente com precisão. Mas aquele velho corpo que se tornou Salvador também estava impregnado de imagens de si. Um Salvador criança, imagético, habitava também aquela velha carcaça. Salvador percebeu que, na velhice, ficava mais evidente que somos parte de nossas memórias. Antes, na juventude, a instantaneidade da vida e o silêncio das dores do corpo faziam com que as memórias tivessem um valor menos evidente em nossa autoimagem.  Mas com o tempo essa imago subjetiva muda.  Salvador passou a perceber que parte fundamental de si sempre foi aquele menino que ouvia extasiado sua mãe cantar enquanto lavava roupa no rio; parte de si sempre esteve na memória da casa subterrânea que povoava as imagens de sua infância. O jovem Salvador, de fato, também habitava aquele velho corpo de escritor.


                            **

Por ocasião de seu aniversário, Caetano Veloso disse em seu Twitter: “Eu tenho muita coisa dos meus 14 anos. E, claro, da minha infância. As coisas mais importantes acontecem quando somos muito jovens”. Talvez seja essa a dinâmica geral das coisas. Vai saber. Não que coisas importantes não possam ocorrer em qualquer momento da vida, mas que esta imago da juventude se forma nos momentos decisivos de estruturação dos nossos lugares no mundo. As marcas da juventude - que em sua imagem especular a cultura antagoniza com a degeneração do corpo velho - passam a ter muita significação na velhice. Nesse sentido, Diana Corso e Mário Corso compreendem que a adolescência - essa recente criação burguesa - seja um momento decisivo na formação de nossa imago. Por isso, sempre seremos, em parte, aqueles jovens desejantes que guardamos na memória, ainda que o espelho insista em negar. Na velhice isso tudo fica muito evidente. A sabedoria da velhice, talvez,  passe pela possibilidade de olhar com afeição este outro que sempre fomos nós. A dor da velhice, então, pode ser mais que a dor do corpo em declínio. Pode ser o sofrimento dessa dupla imagem que nos acompanha; a dor não referente à impossibilidade de voltar a ter  o corpo jovem, mas, também, a sensação  de ter traído aqueles desejos fundamentais; desejos que, com erros e acertos, sempre foram a parte mais autêntica de nós mesmos.


                              *

O velho Salvador, depois de anos, tinha resolvido encenar mais uma peça sua. Mas sua obra deveria ser assinada por um pseudônimo. Tinha receio de identificar pessoas e fatos, afinal, tratava-se de uma obra confessional.


Talvez aqui tenha se equivocado o velho Salvador. Toda arte é confessional. Mas não no sentido pessoal, imediato. Seria Fernando Pessoa mais Alberto Caeiro ou Ricardo Reis? Ou há mais do Sr. K em mim do que em Kafka ? Na arte podemos nos ver em muitos. Aí está sua estranha magia, que nos acompanha desde as pinturas de Lascaux. 


“Dor e glória”, portanto, é um filme confessional. Por isso mesmo ele vai além das memórias da juventude de Antonio Banderas.  É um filme sobre esse que olhamos quando estamos diante do espelho do tempo; esse reflexo de memória, desejo e carne que somos nós.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Fragmentos de Es (His) tórias da Assessoria Jurídica Popular na Aldeia Imbuhy


“Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar”

(Timoneiro – Paulinho da Viola)


Marc Bloch já teria dito que a grande tentação do historiador é a genealogia. A fascinação pela origem, a gênese, o inicio de tudo. Essa tentação também é um grande desafio. Afinal, como identificar, numa cadeia de fatos complexos e caóticos, a raiz fática, o ponto causal onde tudo se desenrola e faz gerar certas conseqüências e não outras? Indo além: uma grande “história” seria o conjunto de invisíveis “estórias”? Como mensurar, no mosaico da vida humana, os detalhes invisíveis de centenas, milhares de fatos? Qual o lugar, nesta narrativa que chamamos “história”, do não-dito, daquilo que esta radicado na memória pessoal e em nada mais? De quantos silêncios se faz uma grande história? Foi lá no Imbuhy que este tema me veio à mente.

**

Seu Navega é um artesão de mão cheia. Não havia canoa que passasse pelo Imbuhy que ele não desse jeito. Navega tem aquelas mãos raras, olhar apurado dos fazedores de coisas. Há pessoas, como Seu Navega, que nascem com essa inata manualidade-do-mundo. Uma habilidade concreta, inserta entre a idéia e a concretude. De uma peça bruta de madeira ele faz nascer uma escultura; seu dom é o de consertar, o de construir, o de (des)velar. Foi Ailton, seu filho, quem me disse que seu pai (Navega) foi ampliando e reformando sua casa aos pouquinhos. Como era impedido pelos militares de entrar com material, Navega ia e voltava várias vezes, de bicicleta, trazendo o material de construção em pequenas partes para levantar a laje da casa. Ailton lembra vivamente o esforço do seu pai e de sua família, na calada da noite, unidos, levantando e ampliando partes da casa que ainda hoje residem na Aldeia Imbuhy.
Foi assim que, numa reunião com os moradores do Imbuhy, pude fitar Ailton diretamente nos olhos, e ele me disse mais ou menos assim: “é por essa casa, por este esforço de meu pai que eu luto pra ficar aqui”. Nenhum arrazoado jurídico poderia ser mais convincente, para mim, do que o silêncio que se seguiu após esta confidência.
***

Quando tudo começou? Seria a partir da primeira bandeira do Brasil bordada pela Dona Iaiá? Ou a genealogia estaria no tempo em que as canoas partiam livres rumo mar adentro, e, como diz Jorginho, “se pegava os peixes de mão”? Ou a gênese estaria refletida em centenas de estórias de amor e de perda que se sucederam? Casas demolidas são apenas fragmentos de estórias? Ou tudo já vem desde quando o último Tamoio pereceu aqui por perto onde hoje há fumaça e asfalto?

Vai saber...

Por enquanto há motivos para se pensar nessas estórias inauditas que vamos colhendo aqui e ali. Afinal, Assessoria Popular não seria outra coisa, senão apurar os ouvidos e a sensibilidade? Relatos, silêncios e gestos que são como as esculturas de Seu Navega, canoas sem destino neste marzão de sentido. Talvez Warat concordasse com isso: a origem é sempre afeto.


09 de setembro de 2015
Vladimir de Carvalho Luz



Foto de Vladimir Luz. Visão frontal da praia da Aldeia Imbuhy - Niterói (RJ)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Gênio Indomável

....




Michel Onfray, professor de filosofia, tem um curioso diagnóstico: “é um paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir”. A necessidade de um “desligamento” necessário sugerido por Onfray, de uma relação pedagógica pautada na busca da autonomia dos sujeitos (alunos e professores) me faz pensar sobre o filme “Gênio Indomável”, particularmente na relação terapêutica estabelecida entre os personagens Will Huting (Matt Demon) e Sean McGuire (Robin Williams).

Will morava num subúrbio. Trabalhava em empregos de baixa qualificação, saia com os amigos para beber, se divertir e arranjava algumas brigas, as quais lhe renderam algumas detenções; mas Will possuía uma diferença, ele era o que se convencionou chamar de “gênio”; mas era um “gênio indomável”, como bem sugere o título em português (no original Good Will Huting). Ocorre que Will foi descoberto “por acaso” por um professor catedrático em matemática, quando, ao fazer a limpeza no pátio da Universidade, resolveu um dificílimo problema de matemática deixado num quadro. Finalmente descoberto o autor da façanha, uma questão urgente deveria a ser resolvida: por conta de suas arruaças, um juiz determinou que Will poderia ficar em liberdade provisória, contanto que buscasse ajuda terapêutica regular, o que foi encaminhado pelo professor que o descobriu.

Com todo gênio, Wiil era realmente indomável. Resolvia problemas de matemática cada vez mais complexos, mas, porém, sua personalidade arredia
e seu temperamento construíram uma couraça que o tentava proteger do mundo. Will criou um verdadeiro inferno para todos os terapeutas que foram procurados. Até que Sea (Robin Willams) passou a ser o seu terapeuta. Tudo mudou desde o primeiro encontro. Will. Aos poucos Will passou a ser entregar no processo terapêutico, Mas mesmo quando ambos estavam envolvidos em seus diálogos, o terapeuta olhava o relógio e dizia “times is up”. E no final, após um emocionante processo de descoberta, Will pergunta: “É o fim”? “Sim, agora é com você, ’time is up’, disse Sean. Desde então, Will não mais voltou para o trabalho que fazia antes, tinha pegado a estrada, após ter conseguido um ótimo emprego, mas preferiu primeiro encontrar a garota que amava na Califórnia.

Parece que um pouco disso tem ligação com o que Onfray falou, claro que num
contexto diferente. Educação, como processo de autonomia (terapia?), é justamente isso: saber a hora de dizer ao aluno que o tempo acabou, que é hora de se virar, mas que há ali alguém para ouvir, e não só falar, e se falar, falar apenas de experiências e não de roteiros prontos; saber que existe a hora do encontro, do diálogo, mas que também há a hora da partida, e que aprender, apesar de livros, dos professores e dos métodos milagrosos, é uma decisão pessoal. Essa concepção não desonera o professor de suas tarefas essenciais, apenas reafirma uma ideia enfraquecida em tempos atuais: a responsabilidade pessoal
do aluno em sua formação, Por isso que Onfray, inspirado em Nietzsche, pensa que professor é aquele que faz tudo para que o aluno vire mestre, que siga seu caminho, sua estrada, aquele que sabe dizer “time is up”.



P.S. Texto feito em 2011... hoje, Sol em Leão, lua em peixes... sem Robin Willams

sábado, 19 de abril de 2014

SAJU - A PRÁTICA CONCRETA DA UTOPIA


Um texto antigo, dos idos dos 90, feito um aluno comum, qualquer um ...


sexta-feira, 7 de março de 2014

ISAAC




*
As baratas continuavam a invadir a casa. Por entre frestas úmidas do grande sobrado, os pequenos insetos esgueiravam-se durante a noite, invadindo os cômodos desocupados. No piso superior, as baratas preferiam passear no estúdio abandonado, misturando-se ao pó dos quadros antigos, aproveitando a textura gasta das grossas cortinas de algodão. Já no piso inferior, o grande salão de festas era o palco predileto dos insetos silenciosos. Uma por vez, tal qual exército disciplinado, as baratas chegavam ao salão descendo pelo forro, voando pela janela, como tivessem sido convidadas para uma noite de gala. Dessa forma ordeira. elas iam se acomodando, comiam e bailavam,  dia após dia, sempre em número cada vez maior. Na medida em que crescia o número de insetos em casa, aumentava também no velho Isaac o seu amor por Laila.
**
Sentado em sua cadeira de balanço, o velho Isaac tomava seu chá da tarde. Mesmo naquela hora, o barulhinho de pequenas patas se arrastando já poderia ser ouvido. O ocaso ainda derramava suas últimas luzes nos amplos espelhos da casa, quando o velho ouviu os passos de Laila. Ah... como era possível ainda lembrar dos olhos de sua falecida esposa. Grandes olhos de cor incerta, como pontos de luz perdidos em alguma direção. Então ela chegava, quase sempre no mesmo horário, pousava suas finas mãos sobre os cansados ombros de Isaac. Ele podia sentir as afiadas unhas de Laila arranhando o seu braço. O pensava em voz alta: “mor, que saudade eu tenho de suas unhas afiadas”. Mas sempre que ele murmurava tais pensamentos as baratas não se incomodavam, continuavam impassíveis, saboreando a carne do bom velho Isaac.

***
À noite, como fazia há anos, Isaac vestiu seu terno preto. Apesar dos anos de prática, já não conseguia dar um nó simétrico. E como sempre acontecia, ao descer a grande escadaria rumo ao salão, vinha-lhe a imagem da grande festa de 1935. Lá estavam todos os seus amigos. Marcos Silva, recém-chegado do exército, e sempre com seu traje impecável. Catarina, a enigmática Catarina, vestida com panos flutuantes, falando alto, empolgada com a música e o vinho. Pais, tios, até o seu avô, Abraão, estava já. Um momento verdadeiramente inesquecível, justamente porque no meio da multidão, em pleno clima vaporoso, um olho cintilante brilhava, era ela: Laila.
Não foram necessárias palavras. Isaac lembrava-se da forma instantânea em que os dois se olharam, e, num encontro repentino dos seus corpos, passaram a dançar no imenso salão. Enquanto se embebedava com as lembranças, Isaac rodopiava no agora empoeirado salão. Como naquela noite inesquecível, agora também todos os olhos estavam voltados para o casal. Só que agora os pequeninos olhos, diminutos pontos na escuridão, não conseguiam entender tamanha empolgação do velho Isaac.

****
Após todo o ritual de lembranças, o velho Isaac ia se recolher. Deitado em sua grande cama (o espaço ao seu lado não era menor que a dor de sua alma), Isaac descansava seu velho ser fatigado de imagens. Porém, como também já vinha acontecendo há anos, antes de dormir Laila lhe acariciava o corpo, e o velho sentia na carne suas unhas afiadas, o passear delicado de suas mãos, até que ele sentia um toque úmido nos lábios. Só depois deste rápido contato, o velho Isaac poderia dormir em paz, e as baratas se despediam do bom velho, desaparecendo em seus obscuros esconderijos, à espera de um novo encontro, ansiosas por novos gestos de amor.


Vladimir Luz (Conto publicado na Revista da Academia Criciumense de  Letras, 2005)

Gravura: "En el baile" de Edward Cucuel

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A GRANDE BELEZA



"O mundo é uma obra de arte que engendra a si própria'
(Nietzsche, Vontade de Potência)



***

Não era uma questão de opção: ele estava destinado à sensibilidade. Deitado em sua cama podia ver o mar no teto com todo aquele azul intenso e infinito. Ondas, ondas. Da sacada de seu apartamento, o Coliseu se abria aos olhos como um quadro. Outrora homens ali morreram e se divertiram, sangue e risos foram gravados em cada tijolo daquelas colunas magistrais. Mas sempre ela, sempre ela, a sensibilidade. Festas, riso, dança, sexo, rotina, e sempre ela a espreitar, a sensibilidade. Ele era assim não por simples decisão, era seu mandato ser um observador metafísico, mundano, irônico e incrédulo dessas coisas intensas e ao mesmo tempo ridículas que somos. 

No meio disso tudo, por certo, havia uma busca inaudita. Quem saberá? Quem poderá ver a grande beleza? Mas o fato mais latente é que havia uma profundidade imperceptível em toda superfície, e ele bem sabia disso. Fenomenologia, diriam os doutos. Cada detalhe, como as reentrâncias e cores do mosaico da Via Triumphalis,  cada gesto humano, por mais fútil e banal, espancava-lhe a sensibilidade inata e bruta. Era como não se lhe fosse dado o direito de ignorar que, mesmo com toda sua grandiosidade, há frestas no Coliseu. As ruínas são os corpos esquecidos do novo. O novo esta nas fissuras. Seres humanos participam compulsoriamente desse enredo. Basta ver o que se gravou em cavernas, papiros, pergaminhos e blogs. Pobres animais falantes, irremediavelmente jogados na consciência do constante vir-a-ser, que buscam, inconscientemente, gravar algo sólido e imemorial no presente fugidio. Tudo então se resumiria  essa longa história depois do verbo , a frestas e rugas, pedra e carne. No pó das ruínas sim, ali havia uma essência, séculos de ontologia: início e fim. Por tudo isso, amiúde ele percebia que em cada gesto humano há uma clareira, um enclave, um lugar cinza entre o velho e o novo, um campo agônico entre o grandioso e o fútil. Por isso, então, temos a arte, essa testemunha parida das coisas que só a sensibilidade captura. E ele olhava tudo isso com aquele olhar de quem já viu muito, viveu muito. E mesmo com tanto, escrevera apenas um livro. Para que mais? Para que? O final já não é por demais sabido desde o início? Festas, riso, dança, sexo, rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade; aquela que não o deixaria nunca, mesmo agora quando tudo já tinha o cheiro ácido do tempo. Jep Gambardella acabara de completar 65 anos.

**

Li muitas coisas sobre o festejado filme de Paolo Sorrentino "La Grande Belezza". Coisas como: a influência de Fellini, Roma como cenário, a multiplicidade de temas num roteiro não linear, um conflito entre o novo e o velho, clássico e pós-moderno, uma crítica à futilidade da sociedade e à superficialidade da arte contemporânea, decadentismo, brevidade do tempo, existência, hedonismo, enfim, um filme pretensioso... Respondo a tudo isso com “Jepinho”: blá, blá, blá.

Nada disso, isoladamente, parece-me tão relevante assim. Ainda que haja, de fato, todas essas questões – o que já faria do filme algo genial –, "La Grande Belezza" trata, em verdade, de algo infinitamente relevante e sutil: a experiência da vida como uma experiência estética. Aí a coisa pega, e pega a todos nós. Ademais, não só por Roma e pelos personagens caricatos vemos a presença de Fellini em “A Grande Beleza” como dizem insistentemente os críticos. O grande maestro se faz presente no elemento onírico que atravessa todo filme, mitigado, é certo, pelo estilo próprio de Sorrentino. O que atravessa é o absurdo da realidade e do cotidiano, dos tipos humanos, o ridículo que convive com a beleza, e, em meio a tudo isso, ao lado de toda superficialidade, do medo e de todas as belezas, há sempre a grande beleza, aquela que não precisa de uma razão controladora. Ela é. Para a grande beleza, há também uma “grande arte”. É essa experiência estética em estado bruto que chega, que toca. Tudo isso é decantado finamente num roteiro propositalmente repleto de experiências e tipos humanos: o padre (cotado a Sumo Pontífice) que jocosamente foge dos assuntos sérios e espirituais e fala de receitas, a vida mundana de novos ricos e suas festas bregas, os nobres decadentes com suas mansões suntuosas, a religiosa tratada como “santa”, a pintura contemporânea feita por uma criança que joga tintas aleatoriamente em um painel. No centro do filme esta o olhar de Jep Garmbardella, um “bon vivant”, um cético jornalista que escrevera apenas um livro, e que vive os tormentos do tempo e a lembrança da mulher que amara. É neste aspecto sutil que o filme "La Grande Belezza" pode ser chamado, sem exageros, de obra-prima: exatamente pela experiência estética proporcionada pelos olhos de Jep Gambardella. Jep somos todos nós. Dessa identidade humana é que se faz a grande arte.

*

Jep Gambardella escrevera apenas um livro. O que ainda há por ser dito? Tudo já foi descoberto pela razão. As coisas inevitavelmente passam. Pessoas morrem. Frestas ficam. Cicatrizes. Talvez possamos, à noite, encontrar aquele amigo que é o guardião das chaves dos palácios para então passear por entre os salões da tradição e assim trapacear com o tempo. Talvez possamos nos fechar ao falatório do cotidiano. Ir ao silêncio dos antepassados e beber dos clássicos seu vinho raro. Tocar o mármore primevo do sentido com o cinzel utilizado pelo demiurgo que deu forma e vida a tudo isso que não se explica. Mas Jep sabia que não há escapatória: há festas, riso, dança, sexo, rotina e ela, sempre ela, a sensibilidade. No fundo, o instante desencontrado do amor é a grande arte, seja ela o que for.

Por tudo isso é que não se consegue sair do cinema imediatamente após o término de a “A Grande Beleza”. Letras descem (ondas, ondas) e lá ficamos, paralisados. Entramos em nosso Coliseu. De repente, por segundos, pairamos em um território inóspito de nós mesmos, onde girafas, cadeiras e o cinema desaparecem. É que ela, mais uma vez ela, sempre esteve ali: nesse lugar que às vezes voltamos, mesmo sabendo que tudo é um truque.

Bravo!


08.02.2014
Vladimir Luz